Acho que escrevi isso tudo para responder às pessoas que me incentivaram a ir ver ZUZU ANGEL no cinema e eu respondi que não teria a mínima condição de fazer isso.
Esse texto explica o porquê.
Uma vez precisei dar 5 min de aula na faculdade. O professor pediu para que eu começasse a exposição, pois os alunos estavam apavorados e eu quebraria esse gelo, em troca eu pedi para ler 2 textos, um no início e outro no final da minha aula e 10 minutos para falar, pois meu tema seria Ditadura Militar - com enfoque na violência. Tive que ler muita coisa, estudar muito, pois não podíamos levar nenhum material para ler. Zuzu & Stuart Angel foram abordados. Na montagem do trabalho, eu escrevia e chorava.
PARA OS NASCIDOS ANTES DE 1950
(Horácio Braun)
Nós nascemos antes da televisão, antes da penicilina, da vacina Sabin, antes da comida congelada, da fralda descartável, do xerox, do plástico, das lentes de contato e da pílula.
Nós nascemos antes do radar, dos cartões de crédito, fricção dos átomos, raio laser e canetas esferográficas.
Antes das máquinas de lavar pratos, secadoras de roupas, cobertores elétricos, ar condicionado e antes do homem andar na lua.
Nós casávamos primeiro e só depois morávamos juntos. Gente estranha, não? Pois é ...
Nós nascemos antes dos direitos dos gays, da mulher que trabalha dentro e fora da casa, da produção independente de filhos, dos berçários, da terapia em grupo, dos SPAs e dos flats.
Nós nunca tínhamos ouvido falar em fitas cassete, videocassete, máquinas de escrever elétricas, corações artificiais, vídeo game, computadores, danoninho e rapazes de rabo-de-cavalo e brinquinho.
Nos nossos dias fumava-se cigarros. Erva era só usada para fazer chá, coca era um refrigerante e pó era sujeira.
Embalo era como se faziam as crianças dormir, lambada era chicotada, fio dental servia para a higiene bucal e malhar era coisa de ferreiro.
Mas nós nos contentávamos com o que tínhamos. Nós somos a última geração tão boba a ponto de pensar que se precisava de um homem para se ter um bebê. Não é de se espantar que estejamos confusos...
Mas nós vivíamos e continuaremos a viver, apesar da próxima invenção que vai aparecer em matéria de computador, e que com toda certeza vai me deixar embasbacado por um período, logo superado, na produção dessa coluna de hoje, que foi redigida ontem, dia do segundo turno das eleições...
A propósito, nós somos da época em que...
(Foi aí que começou a aula que eu tinha que dar, comecei falando:)
Não se podia votar.
Ganhamos lentamente, ao longo dos tempos o direito de votar, coisa que em pouco tempo nossos militares ditadores nos tiraram.
Mas não é sobre o voto que vim falar aqui hoje, sobre isso qualquer um de vocês pode pegar um jornal antigo, ou um livro novo e ler.
Hoje vim falar o que os jornais não falaram, que a TV não noticiou, que não deu no rádio.
Vim falar a visão que teve uma menina por volta dos 10 ou 12 anos vivendo o que foi a ditadura.
Tive um professor de OSPB que simplesmente sumiu. Como já estávamos com as janelas das aulas dele há 2 ou 3 semanas, fui conversar com a coordenadora do ginásio (sim, sou da época do ginasial). E como insisti muito em saber o que tinha acontecido com o professor, a coordenadora me olhou muito seriamente e disse: "menina, acho bom você parar com tantas perguntas, ou corre o risco de ir parar onde está seu professor". Não! Engana-se quem pensou que ela me intimidou. Não intimidou não, ela me apavorou. Calei a boca e fui pra sala, nem ping-pong não quis mais jogar.
Não me lembro com detalhes tudo o que disse naquela aula para os meus amigos, que mais pareciam meus alunos, pois além de eu ter uma idade muito maior que a deles (eles giravam em torno dos 20 anos e eu entrei para a faculdade com 40), incrível como eles prestaram atenção no que eu falava.
Sei que falei da Zuzu, do Stuart e da minha prima que foi presa e só não foi morta porque um tio era alta patente militar na época.
Fechei minha aula com um texto sobre um frei que foi injustamente torturado até a loucura:
FREI TITO
(autor desconhecido)
Na dor de Tito gravou-se o que de mais hediondo produziu o militarismo brasileiro, tornado como símbolo das vítimas de torturas. Refletindo nossa indignação
Preso em novembro de 1969, acusado de oferecer infra-estrutura a Carlos Marighella, Tito é submetido a palmatória e choques elétricos, em companhia com seus confrades. Em fevereiro do ano seguinte, é retirado do presídio Tiradentes e levado para o DOI-Codi.
Durante 3 dias, batem sua cabeça na parede, queimam sua pele com brasa de cigarros e dão-lhe choques por todo o corpo, em especial na boca, "para receber a hóstia", gritam os algozes.
Fernando Gabeira, preso ao lado, tudo percebe. Querem que Tito denuncie quem o ajudou a conseguir um sítio em Ibiúna para o congresso da UNE e que assine um depoimento atestando que dominicanos participaram de assaltos a bancos.
As incessantes torturas não abrem a boca do frade de 28 anos, mas cortam sua alma. Cumpre-se a profecia do capitão Albernaz: "Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia".
Em dezembro de 1970, incluído na lista de presos políticos trocados por um embaixador suíço seqüestrado pela VPR de Lamarca, Tito é banido do Brasil pelo governo Médice. Do Chile ruma para Paris, sem jamais recuperar sua harmonia interior. Nas ruas da capital francesa ele ?vê? o espectro de seus torturadores. No convento, Tito estremece aos gritos do pai espancado no Dops, geme aos berros da mãe pendurada no pau-de-arara, arrepia-se de pavor aos espasmos de seus irmãos eletrocutados, contorce-se em calafrios sob o fantasma do delegado Fleury. Sua mente naufraga em delírios.
No dia 10 de agosto de 1974, um estranho silêncio paira sob o céu azul do verão francês. Nada se move. Entre o céu e a terra, sob a copa de um álamo, balança o corpo de frei Tito, dependurado numa corda.
Do outro lado da vida ele encontrara a unidade perdida. Deixa registrado em seus papéis que "é melhor morrer, do que perder a vida".
Consegui dar a aula inteira sem chorar, mas quando estava terminando minha voz sumiu. O Professor e eu estávamos com os olhos vermelhos e o nariz de "batatinha".
Por Zuzu & Stuart, pelo frei Tito e por mim, não posso assistir esse filme no cinema.
4 comentários, falta o seu:
Lindo e triste tudo isso. A dicotomia da vida...
Mas, justamente por eles e por você, deveria assistir ao filme.
Beijos, linda gueixa.
OSA
Adorei o comentário, mas sei que nem por eles, nem por mim.
Meu útero maternal não me permite essa ousadia.
Beijos mil
Quanta produção em tão pouco tempo!!!! Que inveja... ;-)
Deixo um texto que o Frei Tito escreveu na cela pouco antes do suplício:
"Oh, Jesus! Quando te contemplo
eu redescubro, a sós, contigo,
que Te amo, e que o Teu coração
me ama como a um dileto amigo.
Ainda que a descoberta exija coragem,
faz-me bem a dor contigo,
que por ela me assemelho a Ti,
que ela é o caminho redentor.
Na minha dor me rejubilo,
já não a julgo sofrimento e sim
predestinada escolha que me une a Ti.
Deixai-me pois nessa quietude,
malgrado frio que me alcança,
presença humana não permitas.
Que a solidão já não me cansa,
pois de mim, sinto-Te tão próximo
como jamais antes senti.
Doce Jesus, fica comigo,
que tudo é bom perto de ti?.
A versão musicada (eu ouço direto), você baixa em
http://www.tocadeassis.org.br/index.php?lingua=1&pagina=home
`
Esta é a página do Padre Roberto. Não sei se você conhece, eu não sou católico, mas acho esse homem um santo na Terra. O trabalho dele é belíssimo. Um autêntico franciscano.
Que bonito, Merton! Esse texto eu não conecia.
O site está aberto e à tarde vou dar uma olhada nele e é provável que o adicione. Vou tentar achar a música também.
Obrigada por mais este carinho.
bjs
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